Eloise Caruso Bertol, advogada do Assis Gonçalves, Nied e Follador – Advogados (Crédito da foto: Micheli Iwasaki)
A legislação atual foi criada em uma época em que os bens digitais eram inexistentes ou insignificantes para o patrimônio das pessoas. Isso mudou com a evolução das redes sociais e a maior integração do dia a dia à Internet. A digitalização dos bens criou uma nova realidade que ainda precisa de uma previsão jurídica adequada.
No Brasil, a crescente presença dos bens digitais no cotidiano das pessoas tem gerado debates importantes sobre o patrimônio pessoal nos espaços virtuais quando ocorre o falecimento do proprietário, o que traz à tona a chamada herança digital. Atualmente, não existe uma legislação específica que defina o destino desses bens quando uma pessoa falece, deixando a cargo dos tribunais a responsabilidade de resolver controvérsias nessa área, uma falha que resulta em entendimentos divergentes, dificultando a tutela de direitos.
Segundo Eloise Caruso Bertol, advogada do Assis Gonçalves, Nied e Follador – Advogados, a herança digital engloba todo o patrimônio virtual deixado por uma pessoa. “Conforme ensina a doutrina de Maria Berenice Dias, trata-se de um conceito aberto que abarca quaisquer bens informacionais intangíveis associados a contas on-line, que podem ser de conteúdo econômico (como contas financeiras), sem conteúdo econômico (a exemplo das redes sociais) ou ainda de caráter misto (como é o caso dos direitos autorais)”, explica.
Na prática, prossegue a especialista, “existe um anteprojeto de Código Civil que pretende incluir o patrimônio virtual em seu texto, compreendido como arquivos de texto, áudio, vídeo, imagens, dados pessoais, contas on-line e outros dados compartilhados digitalmente durante a vida. Esses dados podem deter valor econômico ou afetivo para os herdeiros e possuem a particularidade de existirem apenas na forma eletrônica, sem correspondência física. Esta condição exige um tratamento sucessório específico por meio da lei, o que atualmente não é contemplado pela legislação brasileira”, salienta.
O desafio da regulação
No Brasil, os bens físicos são partilhados entre cônjuge sobrevivente e herdeiros conforme o regime de casamento e as regras de sucessão. Contudo, os bens digitais ainda carecem de regulamentação.
“Nossa legislação atual foi criada em uma época em que os bens digitais eram inexistentes ou insignificantes para o patrimônio das pessoas. Isso mudou com a evolução das redes sociais e a maior integração do dia a dia à Internet. A digitalização dos bens criou uma nova realidade que ainda precisa de uma previsão jurídica adequada”, argumenta a advogada.
Além da privacidade, aspecto que muito se preza quando se discute a proteção de dados pessoais, Eloise explica que há também discussões sobre o papel das plataformas digitais no processo de sucessão.
“Os provedores de aplicação podem aplicar seus termos de uso, que geralmente estipulam que os dados dos perfis pertencem à rede social, mesmo após o falecimento do proprietário. Contudo, não há consenso sobre isso”, reforça.
O anteprojeto de reforma do Código Civil
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (13.709/2018) reforça o direito à proteção de informações pessoais dos titulares de dados, bem como a Lei de Direitos Autorais (9.610/1998) oferece definições ao tema, fixando tempo de proteção e direitos dos executores e produtores, mas sem previsões específicas sobre o desafio contemporâneo.
Dada a ausência de maior previsão legislativa sobre o tema no que concerne ao direito sucessório, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) editou o Enunciado de nº 40, segundo o qual “a herança digital pode integrar a sucessão do seu titular, ressalvadas as hipóteses envolvendo direitos personalíssimos, direitos de terceiros e disposições de última vontade em sentido contrário”, em compasso com as previsões da LGPD, observa Eloise.
No mesmo sentido, o anteprojeto que visa à reforma do atual Código Civil, aprovado em abril deste ano e enviado ao Senado por uma comissão de juristas especializada nos temas em debate, inseriu um novo livro na legislação em questão, denominado “do direito civil digital”, que pretende regular a face virtual da vida civil.
“Embora a Lei de Direitos Autorais e o Marco Civil da Internet (12.965/2014) ajudem no debate, eles não resolvem todas as especificidades exigidas para uma regulamentação adequada da sucessão dos bens virtuais. Grande parte da herança digital pode ter um elevado valor afetivo para os familiares, e a ausência de regulamentação agrava o sofrimento da perda de um ente querido”, assinala Eloise.
“É importante que a legislação determine a destinação desses dados para evitar seu desvio ou mau uso, visando à preservação da vontade e da privacidade do de cujus, especialmente ante a relevância do ambiente cibernético para armazenamento não apenas do patrimônio econômico, mas também das comunicações, da intimidade e das mensagens privadas. A regulamentação da herança digital é uma necessidade urgente para adaptar a legislação ao novo contexto tecnológico e garantir a proteção dos direitos e interesses da pessoa falecida e seus herdeiros”, conclui a advogada.