É preciso reler os acordos feitos com as plataformas digitais para pensar, desde já, quais as possibilidades de acesso e gestão das informações para depois da morte
Laura Brito (*)
Não vou mentir: a primeira vez que ouvi sobre herança digital, eu achei uma grande bobagem, uma moda inventada para criar problemas. Afinal, sucessão está aí desde sempre, cumprindo o seu papel de transmitir bens tradicionais. Mas o tempo foi me demonstrando, com rapidez e intensidade, que a questão da herança digital é para todos e para já.
Por isso, estou escrevendo esse texto para me conectar justamente com as pessoas que, como eu, no melhor estilo Tomé, precisam ver para crer, chamando-as a entender que herança digital é um problema meu e seu tanto quanto é da Madonna e da Marília Mendonça.
Quando se começou a falar do assunto, tudo parecia tão distante – as perguntas eram do tipo: o que fazer com bitcoin quando a pessoa falecer, o que fazer com a conta do Facebook? Naquele momento bitcoin era assunto para revista de curiosidades e o Facebook era uma rede simples de contato.
Mas quem puxou esse assunto estava certíssimo: em pouco tempo o investimento em criptomoedas passou a ser uma realidade comum e uma grande parte dos negócios do mundo passou a depender dos algoritmos das redes sociais.
Não bastasse isso, todas as fotos de nossas famílias saíram dos álbuns físicos e de pastas no computador para provedores e repositórios de informações que estão conectados à nossa identificação junto a esses servidores.
Há contratos que foram firmados por e-mail cujo acesso depende de uma senha vinculada a cada um de nós, a partir da concordância que manifestamos com os termos de uso de provedores de correio eletrônico. Isso sem falar nas milhas, e-books e conteúdos pagos baixados em plataformas de streaming.
E é aqui que reside o nosso desafio. Ainda que não sejamos a Madonna, que está preocupada em proibir o uso de seu holograma depois da morte, ou a Marília Mendonça, cujas redes sociais e base de seguidores têm estimativa financeira imensa, tenho certeza de que você também vê valor nos dados, arquivos e comunicações que mantém junto a provedores com os quais você contratou serviços sem ler os termos. Ou, ainda que tenha lido, só tinha a opção de aderir.
Termos de uso e serviço dos provedores
Ou seja, diferentemente da herança tradicional, cuja solução está na autonomia e nos limites legais da disposição de última vontade, na herança digital temos o componente dos termos de uso e serviço dos provedores. Ainda estamos a construir as definições para essa relação entre as leis sucessórias, autonomia da vontade e as cláusulas desses contratos. Mas você deve, sim, reler esse acordo feito com as plataformas para pensar, desde já, quais as possibilidades de acesso e gestão daquelas informações para depois da morte.
Além disso, fica a sugestão de elaborar um codicilo, que é um documento reconhecido pela lei, originalmente para a disposição de última vontade sobre bens pessoais de pequeno valor e para definir os ritos funerários.
Mas hoje há um amplo consenso de que ele é instrumento hábil para decidir o destino de seu patrimônio digital, especialmente quando não há um valor econômico muito expressivo nesse legado. Direcione ali para quem devem ficar seus pontos de cartão de crédito, seus livros baixados no Kindle, seus cursos online, cashback e outras vantagens ligadas ao seu acervo de consumo digital.
(*) Advogada da Laura Brito Advocacia, especialista em Direito de Família e das Sucessões. Atua como professora em cursos de Pós-Graduação, além de ser palestrante, pesquisadora e autora de livros e artigos na área.