Patricia Peck Pinheiro, presidente da Comissão Especial de Privacidade e Proteção de Dados da OAB SP
No mundo digital, o conteúdo tornou-se um objeto de negociação como uma commodity
O acesso mais amplo à internet de qualidade e a própria dinâmica que a rede projeta desde a sua criação – a possibilidade de compartilhamento ilimitado e irrestrito de conteúdos digitais – fizeram crescer também a pirataria virtual, isto é, o download e o compartilhamento não autorizados de bens culturais (filmes, livros e músicas) e softwares de computadores, todos protegidos por direitos autorais.
Os sites de streaming e download ilegal de filmes e séries viram um aumento de acessos tanto nos EUA quanto em países da Europa durante o último mês de março, em que boa parte da população permaneceu em casa devido à pandemia do coronavírus. Segundo estudo da firma Muso, repercutido pelo The Hollywood Reporter, esses sites viram um aumento de 41,4% de tráfego nos EUA, 42,5% no Reino Unido, 66% na Itália, 50,4% na Espanha e 35,5% na Alemanha. A presidente da Comissão Especial de Privacidade e Proteção de Dados da OAB SP, Patricia Peck Pinheiro, acredita ser preciso uma mudança cultural na maneira como as pessoas encaram suas responsabilidades no ambiente virtual.
“No mundo digital, o conteúdo tornou-se um objeto de negociação como uma commodity. Qualquer pessoa hoje cria um site na internet que alcança acesso global imediatamente. E esse conteúdo não é gerado necessariamente para quem compra, mas torna-se cada vez mais uma mercadoria cuja posse agrega valor ao seu proprietário. No entanto, quem decide quem pode usar a criação é o autor, e não o usuário que quer fazer uso ilimitado do bem. E esse criador precisa ser protegido, sob pena de sabotarmos a própria ‘Sociedade do Conhecimento’”, adverte Pinheiro.
Impedir que ilícitos sejam cometidos na internet é um grande desafio, mas segundo a especialista, há medidas e canais eficazes para remoção de conteúdo e preservação dos direitos de autoria.
A pirataria virtual traz também impactos para consumidores e consumidoras. Um exemplo típico é o download de softwares pirateados. “Apesar de parecer que há um gasto menor, utilizar produtos pirateados abre vulnerabilidades nos sistemas e traz riscos como o de bloqueio das funcionalidades que podem gerar prejuízos muito maiores. É muito comum também que os arquivos irregulares tenham códigos maliciosos incorporados, que acessam os registros e provocam vazamentos de dados pessoais”, ressalta a advogada.
Segundo dados da Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes), houve avanço da quantidade de anúncios vendendo software pirata identificados e retirados. Somente no primeiro semestre de 2019, mais de 45 mil anúncios, links e sites com conteúdo que infringem o Direito Autoral de Software foram removidos.
Expansão do comércio eletrônico
Outro problema vem do fato de que a pandemia do novo coronavírus impulsionou migrações para o comércio eletrônico. Segundo relatório da Ebit/Nielsen, o e-commerce brasileiro cresceu 47% no primeiro semestre de 2020, maior nível dos últimos 20 anos do setor. Esse crescimento veio, contudo, acompanhado de um aumento de 10%, só no primeiro trimestre, na quantidade de produtos falsificados e irregulares apreendidos pela Receita Federal. Os dados confirmam a penetração da pirataria no comércio digital e mostram a importância do combate e prevenção a essa prática tão nociva à economia. O Dia Nacional de Combate à Pirataria e à Biopirataria, celebrado em 3 de dezembro, serve a essa finalidade.
Para Patrícia Peck Pinheiro, os produtos contrafeitos vêm ganhando espaço no ambiente online principalmente dentro dos chamados marketplaces (grandes plataformas de e-commerce que abrem espaço para diferentes empresas venderem por meio do seu site).
“O modelo de negócio mais usualmente adotado por essas plataformas permite a sua caracterização como fornecedor, sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor, e como Provedor de Aplicação, nos termos do Marco Civil da Internet. No entanto, a eficácia do combate à pirataria só será possível se envolver esses provedores de acesso e de aplicação que permitem a publicação de conteúdo por terceiros. O trabalho de responsabilização de todas as partes envolvidas deve ser conjunto, caso contrário uma lei ou uma medida judicial não conseguirão atingir seu objetivo”, explica Pinheiro, que é especialista em Direito Digital, Propriedade Intelectual, Proteção de Dados e Cibersegurança.
Com o objetivo de orientar as plataformas de comércio eletrônico, o Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos de Propriedade Intelectual (CNCP), órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, publicou em abril o guia “Boas Práticas e Orientações às Plataformas de Comércio Eletrônico para Implementação de Medidas de Combate à Venda de Produtos Piratas, Contrabandeados ou, de Qualquer Modo, em Violação à Propriedade Intelectual”. Uma das orientações é que as plataformas de comércio eletrônico tenham uma política de uso e de prevenção e repressão à venda de produtos ilegais em seus ambientes de negócio e que efetivamente prevejam mecanismos para que os vendedores tenham um cadastro mínimo que permita sua devida identificação.
Outra medida é a elaboração de um projeto de autorregulamentação proposta pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão também vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Os produtos ganhariam um “selo” para indicar ao consumidor e à consumidora que estão em conformidade com regras de propriedade intelectual e garantem a segurança do consumidor.
Implementação de boas práticas
Patrícia Peck comenta ambos os projetos: “Ainda há muito que evoluir até a efetividade da fiscalização, mas as medidas que vêm sendo propostas pelos órgãos vinculados têm muito a contribuir, especialmente no aspecto de implementação de boas práticas e conscientização da população e do mercado”.
O comércio de produtos contrafeitos é danoso para toda a cadeia, abrangendo Poder Público, consumidores e consumidoras e a própria indústria detentora dos direitos de propriedade intelectual dos insumos.
No Poder Público o impacto mais direto é na arrecadação orçamentária. Segundo dados do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), o Brasil perdeu R$ 291,4 bilhões de reais para o mercado ilegal em 2019. O valor é a soma das perdas registradas por 15 setores industriais e a estimativa dos impostos que deixaram de ser arrecadados em função da ilegalidade.
Os prejuízos a quem consome ocorrem pelos riscos de usar produtos ou serviços que não foram submetidos às regulamentações específicas ou às normas de conformidade e garantia da qualidade, o que pode levar sérios danos à saúde, como nos casos de alimentos ou drogas lícitas como bebidas alcóolicas e cigarros falsificados. Atualmente, os cigarros ilegais são os produtos contrabandeados mais vendidos no Brasil, majoritariamente provenientes do Paraguai. De acordo com estudos médicos, os cigarros falsificados apresentam maior concentração de metais cancerígenos e agentes de contaminação, como colônias de ácaros e fungos.
Na indústria, a perda de receita decorrente da competição com produtos ilegais significa a ausência de retorno dos investimentos em desenvolvimento, segurança, recursos humanos e tecnológicos, colocando programas de incentivo à inovação em risco. Tudo isso sem mencionar a questão da evasão da biodiversidade – são animais, plantas e minérios que chegam e saem do país por meio de contrabando, ferindo a fauna e a flora locais e de outros países.
O Código Penal, em seu Artigo 184, classifica como pirataria o desrespeito a direitos intelectuais e de autor, mas se costuma incluir no mesmo balaio contrabando (importação proibida, Artigo 334 do Código Penal), descaminho (importação sem pagamento de impostos, também Artigo 334 do Código Penal) e contrafeito (uso de marca sem autorização do titular, Artigo 189 da Lei de Propriedade Industrial). Além disso, no entendimento popular também é pirataria o desrespeito a normas e regulamentos técnicos pertinentes a produtos submetidos ao Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia), à Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a outros órgãos reguladores.