Por Juliana Carrillo Vieira *
O movimento da Eletrobras – que já detém posição dominante no setor elétrico e avança o setor de telecomunicações, ao assumir o controle integral da Eletronet, é emblemático. Ao incorporar ativos de extrema relevância para o backbone nacional de dados, ela alcança grande parte das operadoras, provedores e data centers, como também assumiu um passivo jurídico significativo. É justamente sobre esse aspecto que se impõe uma reflexão por parte da comunidade regulatória e institucional
Vivemos tempos em que os litígios empresariais ultrapassam o mero embate entre interesses privados. Em casos que envolvem setores estratégicos da sociedade, como a infraestrutura nacional, os conflitos judiciais podem gerar efeitos em cadeia, com risco real de comprometimento de serviços essenciais.
O recente movimento da Eletrobras – que já detém posição dominante no setor elétrico e, agora, avança sobre o segmento de telecomunicações ao assumir o controle integral da Eletronet, responsável pela maior malha de fibra óptica do país – é emblemático. Ao incorporar ativos de extrema relevância para o backbone nacional de dados, a Eletrobras não apenas expandiu sua atuação no setor de telecomunicações, passando a alcançar grande parte das operadoras de telecomunicação, provedores de internet e data centers, como também assumiu um passivo jurídico significativo. É justamente sobre esse aspecto que se impõe uma reflexão séria por parte da comunidade regulatória e institucional.
As empresas MinasMais e Elig, do empresário Bertolino Ricardo Almeida, assessoradas por este escritório, são partes em litígios que envolvem condutas atribuídas a Eletronet, tais como retenção indevida de equipamentos, descumprimento de decisões judiciais, desvio de clientela e utilização de infraestrutura sem a devida contraprestação. Tais alegações, cuja gravidade é inegável, são objeto de discussão em ações judiciais que tramitam no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, dentre outras Cortes.
O que confere singularidade a esse caso não é apenas o vultoso valor em discussão judicial – que ultrapassa R$ 9 bilhões –, mas o risco sistêmico que representa: a possibilidade da infraestrutura de dados que sustenta o tráfego de internet no Brasil estar baseada em ativos cuja titularidade encontra-se sob disputa judicial.
Caso a perícia técnica recentemente determinada pelo Tribunal do Mato Grosso nas dependências da Eletronet comprove a presença e o uso indevido de bens privados sem retribuição pela companhia, estar-se-á diante de uma violação manifesta da boa-fé objetiva e da função social do contrato com repercussões patrimoniais e, até mesmo, criminais.
Os elementos constantes dos autos da ação de manutenção de posse ajuizada pela Eletronet e a recente determinação de perícia técnica, já seriam suficientes para alarmar os acionistas da empresa de economia mista, mas também os órgãos de controle e as instâncias de defesa da transparência na gestão pública, além da sociedade como um todo.
Isso porque, a relevância econômica e institucional do caso transcende o âmbito privado. Como reconhecido pela própria Eletronet na referida ação, a retirada ou o acesso aos equipamentos em litígio localizados em suas instalações representa risco concreto à continuidade operacional da rede de dados:
“… o ingresso de terceiros nas dependências da Requerente, que envolvem ambientes críticos da infraestrutura de rede nacional, poderá comprometer a segurança e a continuidade da prestação de seus serviços, inclusive com risco de interrupção de parte da rede de dados que atende a diversas regiões do país.”
Portanto, considerando que o acesso à internet constitui um direito fundamental e um insumo essencial ao funcionamento de atividades cotidianas, da indústria, do comércio, do sistema financeiro e do próprio governo, é imperioso um acompanhamento institucional atento sobre esse processo judicial, para que sejam avaliados seus impactos e desdobramentos sobre a segurança e continuidade dos serviços digitais no Brasil.
Mostra-se pertinente questionar qual é a real capacidade operacional da Eletronet – subsidiária integral da Eletrobras desde abril passado – de gerir parte substancial do backbone de internet do país, considerando que a simples realização de uma perícia judicial em suas instalações é apontada pela própria companhia como fator potencial de instabilidade sistêmica na rede de internet e transmissão de dados no país. O risco de um verdadeiro “apagão digital” não pode ser negligenciado quando está em jogo a continuidade de serviços essenciais à sociedade.
Nesse cenário surge a figura da responsabilidade sistêmica: obrigação de agentes econômicos e institucionais de atuar com diligência redobrada sempre que suas condutas ou omissões puderem comprometer a estabilidade de estruturas essenciais ao funcionamento do Estado e da economia. Trata-se de uma responsabilidade que vai além da esfera privada e alcança o interesse público, impondo o dever de preservar a continuidade de serviços cuja interrupção pode gerar efeitos em cadeia, como é o caso da infraestrutura de dados e comunicação.
A Eletrobras, na qualidade de sociedade de economia mista com participação acionária significativa da União — muito embora mais de 30% de seu capital esteja nas mãos de investidores estrangeiros e não residentes fiscais —, submete-se a um regime jurídico que impõe elevados padrões de transparência, eficiência e observância ao interesse público. Considerando sua importância estratégica para a infraestrutura de dados do país, revela-se indispensável o monitoramento contínuo da companhia por parte da Controladoria-Geral da União (CGU) e dos demais órgãos de controle institucional, bem como da própria sociedade. Tal acompanhamento é essencial não apenas para assegurar a saúde econômico-financeira da empresa – que tem como acionista a União-, mas também para preservar a integridade das estruturas tecnológicas do país, prevenindo-se, assim, riscos sistêmicos – como o chamado “apagão digital” – decorrentes de decisões administrativas mal avaliadas e de políticas de governança corporativa frágeis ou ineficazes.
*Advogada processualista, especialista em litígios empresariais; assessora jurídica das empresas MinasMais, Elig e Bertolino Ricardo Almeida