Como a Inteligência Artificial está redefinindo o Judiciário brasileiro

Victória Lissoni Cornélio, advogada, e Julia Aguiar Fonseca, estagiária do escritório  Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados

A IA, quando utilizada com responsabilidade, transparência e rigor ético, pode ser uma importante aliada na construção de um Judiciário mais eficiente e inclusivo. No entanto, sua implementação deve sempre respeitar os limites constitucionais e os direitos fundamentais das partes, preservando a essência do processo como instrumento de realização da Justiça.

Victória Lissoni Cornélio e Julia Aguiar Fonseca (*)

A constante evolução tecnológica convida à reflexão sobre a profunda transformação provocada pela digitalização em todas as esferas da sociedade. No âmbito do Judiciário, essa mudança tem sido particularmente intensa, modificando não apenas a forma de tramitação dos processos, mas também os próprios paradigmas da prestação jurisdicional.

A informatização do Judiciário brasileiro teve início com a promulgação da Lei nº 11.419/2006, marco fundamental que reconheceu a validade jurídica dos atos processuais praticados em meio eletrônico. Desde então, a Justiça brasileira passou a incorporar progressivamente novas tecnologias, buscando maior celeridade, eficiência e transparência nos serviços prestados à sociedade.

A massificação da Internet, aliás, viabilizou mudanças que, há pouco tempo, pareceriam impensáveis: petições digitais substituíram os autos físicos; audiências e sessões passaram a ser realizadas por videoconferência; intimações eletrônicas tornaram-se a regra, e não mais a exceção.

Com o avanço da Inteligência Artificial, porém, um novo capítulo dessa transformação começou a ser escrito. Inicialmente impulsionado pela Resolução nº 332/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o uso da IA no Judiciário começou de maneira ainda tímida, pautado em princípios gerais como a responsabilidade, a transparência e o respeito aos direitos fundamentais.

Contudo, o crescimento exponencial das ferramentas de automação, a sofisticação dos algoritmos e os riscos inerentes ao seu uso em atividades judiciais revelaram a necessidade de um marco regulatório mais sólido e detalhado.

Nesse contexto, no dia 18 de fevereiro de 2025, o CNJ aprovou a Resolução nº 615, estabelecendo normas técnicas e éticas para a utilização da Inteligência Artificial no Judiciário brasileiro. Aprovada sob a gestão do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, a nova resolução representa um salto qualitativo na governança do uso de IA nos processos judiciais, alinhando inovação tecnológica à preservação dos valores constitucionais.

Entre as inovações trazidas pela Resolução nº 615, destaca-se a classificação dos sistemas de Inteligência Artificial conforme o nível de risco que oferecem aos direitos fundamentais. Ferramentas consideradas de baixo risco, como sistemas de organização de pauta ou triagem inicial de petições, seguem autorizadas, desde que sob monitoramento humano contínuo.

Já aplicações de alto risco, como aquelas que realizam a análise de decisões judiciais ou sugerem sentenças, passaram a ser objeto de regulamentação rigorosa, exigindo altos padrões de explicabilidade algorítmica, transparência nos critérios utilizados e respeito irrestrito à proteção de dados pessoais.

Mecanismos de supervisão humana

A Resolução ainda impõe que todo o uso de Inteligência Artificial no Judiciário seja acompanhado de mecanismos de supervisão humana, garantindo que as decisões continuem sendo atribuídas a magistrados, e não a sistemas automatizados. Esse princípio assegura a preservação da autonomia da função jurisdicional, impedindo que a tecnologia suplante o julgamento humano.

No processo civil, a Inteligência Artificial já se faz presente em atividades como o agrupamento de demandas repetitivas, a padronização de despachos e a gestão de acervos processuais volumosos. Embora essas ferramentas tragam ganhos expressivos de produtividade e racionalização dos recursos judiciais, também geram novas preocupações quanto à preservação do contraditório, da ampla defesa e da igualdade de tratamento entre as partes. Afinal, a assimetria no acesso a tecnologias sofisticadas pode, em certos casos, acirrar desigualdades entre os litigantes, exigindo atuação vigilante da advocacia e da sociedade civil.

Assim, mais do que uma transformação digital no Judiciário, o avanço tecnológico representa uma oportunidade de reafirmar o compromisso com uma Justiça que, mesmo na era digital, continue sendo humana, técnica e acessível. A Inteligência Artificial, quando utilizada com responsabilidade, transparência e rigor ético, pode ser uma importante aliada na construção de um Judiciário mais eficiente e inclusivo. No entanto, sua implementação deve sempre respeitar os limites constitucionais e os direitos fundamentais das partes, preservando a essência do processo como instrumento de realização da Justiça.

(*) Victoria Lissoni Cornélio, advogada, e Julia Aguiar Fonseca, estagiária, ambas da Área Cível do escritório  Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados 

 

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