A era da Inteligência Artificial está só começando — e a regulação precisa acompanhá-la

A IA não esperará pela regulação e cabe à área jurídica encontrar formas de acompanhar esse movimento sem perder de vista os princípios que sustentam o Estado de Direito. A era da Inteligência Artificial já começou. A adaptação jurídica precisa ser imediata.

Caren Benevento (*)

A Inteligência Artificial (IA) não é uma tendência futura. Ela já está presente em praticamente todos os setores — da indústria cultural à educação, passando por saúde, jurídico, agronegócio e marketing. Seu impacto, porém, ainda está em estágio inicial. Estamos apenas arranhando a superfície do que essa tecnologia será capaz de transformar. E isso vale, especialmente, para o campo jurídico.

Um dos temas mais sensíveis e urgentes nesse cenário é a forma como grandes modelos de linguagem são treinados. Esses sistemas aprendem a partir de enormes volumes de dados — muitos deles compostos por obras protegidas por direitos autorais. A pergunta central, portanto, não é apenas técnica: é também legal.

É possível treinar uma IA com conteúdos protegidos sem violar a lei? A resposta depende de vários fatores. No Brasil, a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998) protege quaisquer atos de reprodução ou comunicação de obras, exigindo autorização expressa do titular. Não existe no texto legal uma exceção específica para Text and Data Mining: pesquisadores e empresas dependem de obras em domínio público, de licenças voluntárias ou de interpretações – ainda não pacificadas – do Art. 46.

O Projeto de Lei 2338/2023 propõe criar uma limitação voltada a finalidades de pesquisa e interesse público, mas o dispositivo ainda não foi aprovado. Quando o treinamento de IA envolve obras protegidas e se destina a fins comerciais — situação frequente entre startups —, a orientação predominante, até que haja definição legislativa ou jurisprudencial em sentido diverso, é obter licença dos titulares ou adotar modelos de licenciamento coletivo, sob pena de infração. Mesmo conteúdos amplamente acessíveis na Internet permanecem protegidos: disponibilização não significa domínio público.

O desafio jurídico não se limita ao direito autoral. Sempre que os datasets incluírem dados pessoais, as bases legais, os princípios de minimização e as obrigações de segurança da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) precisam ser observados. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) já sinalizou que poderá fiscalizar sistemas de IA, instaurar processos administrativos e atuar como ente auxiliar em ações judiciais quando houver tratamento irregular.

Ao contrário do modelo norte-americano, que permite alguma flexibilidade sob o guarda-chuva do “fair use”, o sistema jurídico brasileiro opera com uma lista fechada de exceções. Isso cria segurança para os titulares de direito, mas impõe barreiras à inovação e ao desenvolvimento de novos produtos baseados em IA.

Resumo das fontes utilizadas no treinamento

Na União Europeia, por exemplo, o recém-aprovado AI Act exige que desenvolvedores de Foundation Models publiquem um resumo das fontes utilizadas no treinamento, solução que busca equilibrar transparência e segredo industrial. Os litígios já começaram — e tendem a se intensificar. Autores brasileiros que tiverem suas obras utilizadas indevidamente por empresas estrangeiras têm, hoje, caminhos jurídicos possíveis, como notificações com base na DMCA nos Estados Unidos, ou ações no foro do infrator, respeitada a lei local.

Há também a perspectiva de cooperação internacional com base no Projeto de Lei da Inteligência Artificial (PL 2338/2023), que ainda está em debate no Congresso Nacional e, em âmbito mais amplo, debates na OMPI e no WIPO SCCR sobre regras globais para IA. Esse mesmo projeto, embora avance em algumas frentes, ainda não oferece respostas completas. Faltam diretrizes claras sobre o uso comercial de datasets e sobre a obrigação — ou não — de listar individualmente as obras utilizadas nos treinamentos. A União Europeia já exige, por exemplo, a publicação de um resumo das fontes de dados. No Brasil, o tema ainda é controverso.

Diante desse cenário em rápida evolução, o campo jurídico brasileiro precisa se mover com agilidade e responsabilidade. Garantir segurança jurídica sem sufocar a inovação será o grande desafio. Isso exige diálogo constante entre juristas, desenvolvedores, reguladores e a sociedade civil. A Inteligência Artificial não esperará pela regulação — e cabe ao Direito encontrar formas de acompanhar esse movimento sem perder de vista os princípios que sustentam o Estado de Direito. A era da IA já começou. A adaptação jurídica precisa ser imediata.

(*) Sócia da Benevento Advocacia e pesquisadora do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (USP)

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