A decisão do STF sobre a tributação do software

O advento da Indústria 4.0, somado à grande urbanização e à consolidação de um robusto setor de serviços fizeram com que o ISS deixasse de ser uma utopia e passasse a significar emancipação financeira dos municípios.

Saul Tourinho Leal (*)

O Supremo Tribunal Federal encerrou o histórico julgamento que reputou inconstitucional a incidência do ICMS sobre os serviços de software. O tributo devido é o ISS e a história que ilustra essa decisão precisa ser contada.

O Século XIX foi o século dos impérios. O XX, o das nações. Estamos no século das cidades. O advento da Indústria 4.0, somado à grande urbanização e à consolidação de um robusto setor de serviços, fizeram com que o ISS deixasse de ser uma utopia e passasse a significar emancipação financeira dos municípios. É a realização da antevisão da Constituição de 1988, no art. 156, III, segundo o qual compete aos municípios instituir impostos sobre “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”.

O setor de tecnologia é feito por uma lógica global: hardware e software. O primeiro, físico, tangível e corpóreo, que muda de titularidade, mercadoria propriamente dita. Já o software constitui a formatação das ideias, a força dos dados impulsionada pela inventividade humana, a parcela fluida, intangível, incorpórea, que não muda de titularidade, mas propicia experiências que ganham novas utilidades, um serviço, de fato.

O constitucionalismo brasileiro entrega a competência tributária do hardware para os Estados, com o ICMS, e, do software, aos municípios, pelo ISS. Este, expressamente regido pela Lei Complementar n. 116/2003, que tem itens próprios (1.04 e 1.05) destinados aos programas de computadores, qualquer que seja a modalidade. Com o iminente leilão do 5G e a chegada da internet das Coisas (IoT), tudo terá potencial de se transformar num hardware. Uma geladeira, um fogão, um carro, um relógio etc, todos poderão integrar essa vasta economia digital. Não faltará base tributária ao ICMS.

Quando as águas sobem, todos os barcos se elevam. Por que constituir, em desafio à Constituição, um conceito artificial que arremessaria esse setor tão dinâmico no terreno pantanoso da guerra fiscal do ICMS, com todas as suas disputas paroquiais profundamente hostis à inovação? Por isso, é justo compreender a decisão do STF como sendo uma das mais importantes já tomadas em matéria tributária nos últimos tempos.

A Suprema Corte, depois de quase duas décadas, concluiu o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade n. 1945 (Rel. Min. Cármen Lúcia) e da ação direta de inconstitucionalidade n. 5659 (Rel. Min. Dias Toffoli).

Na ADI 1945, pediu-se a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 7.098/1998, em especial, do inciso VI do art. 2º, que faz incidir o ICMS sobre “as operações com programa de computador – software -, ainda que realizadas por transferência eletrônica de dados” e também do § 6º do art. 6º, que aponta como base de cálculo “qualquer outra parcela debitada ao destinatário, inclusive o suporte informático, independentemente de sua denominação.

Similarmente, a ADI 5659, ajuizada pela Confederação Nacional de Serviços, alegou a inconstitucionalidade do Decreto estadual n° 46.877/2015-MG, e interpretação conforme do art. 5° da Lei n° 6.763/75; do art. 1°, I e II, do Decreto nº 43.080/2002, ambos de Minas Gerais; bem como do art. 2° da LC 87/96, a fim de excluir das hipóteses de incidência do ICMS as operações com software .

Segundo a maioria de 7 votos a 4, o tributo devido é o ISS. Há, contudo, proposta de adoção da modulação de efeitos da decisão, para “(…) dotá-la de eficácia a partir da data da publicação da ata de julgamento”.

O fracasso ou sucesso das nações se define pela capacidade que têm de construir um ambiente que anime nas pessoas a certeza do Direito, Direito esse que não precisa ser imutável, mas há de ser, no mínimo, previsível. É para isso que ele existe.

Compromisso com segurança jurídica

Na contemporaneidade, a Constituição de 1988 exorta o compromisso indeclinável com a segurança jurídica em matéria tributária, a ponto de a Seção II, do Capítulo I (do Sistema Tributário Nacional) do Título VI (da Tributação e do Orçamento) se dedicar exclusivamente às “Limitações do Poder de Tributar”. Limitar esse poder é a forma que do Constituinte de dizer: o poder de tributar não significa nem envolve o poder de destruir, como anotou, nos EUA, o Justice Oliver Wendell Holmes, Jr, sempre citado pelo ministro Celso de Mello.

O inciso I do art. 150, por exemplo, veda à União, aos Estados, ao DF e aos Municípios “exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”. E não é só. As alíneas “a”, “b” e “c” do inciso III do art. 150 replicam tais vedações “a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”; “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”; e “antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b”.

São comandos reputados, pelo STF, cláusulas pétreas implícitas, e cuja finalidade é afastar quaisquer incursões estatais sobre o patrimônio dos contribuintes quando guiadas pelo norte da surpresa. A sabedoria da previsibilidade é insumo vital no Direito Tributário.

(*) Doutor em Direito Constitucional, sócio de Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia e assessor jurídico da ABES

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