A advocacia, o compliance e seus guardiões

Os departamentos jurídicos internos e os profissionais de compliance têm uma função primordial na manutenção da advocacia dentro dos mais altos padrões éticos. E dispõem de amplo ferramental para exercer essa função com qualidade técnica e imparcialidade. 

Martim Della Valle (*) 

Um fenômeno tem chamado a atenção no mundo jurídico: a quantidade de escritórios de advocacia objeto de operações policiais nos últimos anos. Seja por associação com o crime organizado e o tráfico internacional, seja como veículo para pagamento de propinas ou de lavagem de dinheiro.

Não cabe antecipar qualquer juízo. Culpados devem ser punidos, inocentes devem ser absolvidos, sempre no mais estrito respeito ao devido processo legal. Tampouco pode haver qualquer limitação ou embaraço às prerrogativas profissionais dos advogados. É importante que as entidades de classe, especialmente a Ordem dos Advogados, estejam atentas nesta defesa.

A defesa de prerrogativas e do devido processo legal não é o suficiente. É indispensável a reflexão sobre o aprimoramento dos padrões e práticas profissionais. Nessa tarefa, não se podem ignorar certos riscos na atuação do advogado. Certos aspectos da profissão merecem maior regulamentação ou pelo menos um esforço mais concentrado de adoção de boas práticas. Na ausência destas, pode haver prejuízo a toda classe: o mau exercício da advocacia afeta a todos. Não há maiores interessados em elevar ao máximo a integridade da advocacia do que os próprios advogados.

Um passo fundamental nessa direção deve ser a discussão ampliada sobre a adoção de regras de mecanismos de prevenção à lavagem de dinheiro, conforme determinado pela Lei 9.613. Essa lei determina que certos setores adotem mecanismos de prevenção à lavagem de dinheiro e passem a comunicar operações suspeitas ao órgão regulador ou ao Coaf. A advocacia ainda não o fez, o que foi objeto de recente alerta da Transparência Internacional. Há setores que entendem que a norma não se aplicaria à advocacia. Essa discussão deve ser feita de modo ampliado e público.

Outra frente é a atualização e consolidação dos temas ligados à ética profissional, sobretudo o Código de Ética e o Estatuto de Advocacia. Essas normas datam respectivamente de 1995 e 1994, representaram importante avanço à época, mas trataram de uma realidade que se alterou substancialmente nos últimos 25 anos. Se não novos códigos, ao menos a edição de protocolos que consolidem e especifiquem regras éticas para os desafios atuais, ofereçam orientação e melhores práticas e reflitam a jurisprudência dos tribunais de ética. Ao menos com dispositivos interpretativos que visem a dar maior concreção a tópicos formulados de modo genérico no código de ética e que ao mesmo tempo consolidem a profusão de provimentos dos diferentes conselhos da Ordem.

Reforço dos tribunais de ética

Ainda outra frente é o reforço dos próprios tribunais de ética, de modo a conseguir maior celeridade, a publicação de estatísticas consolidadas sobre a natureza das infrações (sem abrir mão do sigilo quando aplicável) para que se tenha um retrato fiel das discussões presentes. A Seccional de São Paulo tinha impressionantes 28.700 casos em andamento no ano passado. Há muito o que aprender com esses casos, para o bem e para o mal. Há publicação de estatísticas mas muito ainda pode ser feito.

Uma outra importante linha de defesa ética é a própria contratação dos serviços de advocacia. A maioria das empresas que possuem programas de compliance colocam escritórios de advocacia como fornecedores com risco potencial. Esse fenômeno decorre da natureza da profissão, que intermedeia o contato de clientes com agentes públicos. A consequência é que escritórios e seus honorários são objeto de pesquisa e aprovação por parte das equipes de compliance (muitas vezes exercido pelo próprio departamento jurídico interno).

Neste exame, existem técnicas de detecção de risco ou malfeitos antes e depois da prestação dos serviços. Em linhas gerais, serão analisadas a natureza do serviço prestado, a forma de pagamento dos honorários e sua correspondência com o que de fato foi prestado. Na lista de “red flags” estão a ausência de um produto tangível do trabalho, trabalhos que se resumem a “contatos” sem qualquer produto jurídico, grandes somas condicionadas a atos de terceiros, pagamentos a terceiros a título de urgência e similares.

Há aqui também um elemento cultural de importância que está na mão dos que contratam advogados: a própria definição do que seja sucesso na advocacia. Existe quase um folclore profissional em torno da picardia de um certo de tipo de advogado, que dá saltos argumentativos e graciosos para se safar de apertos ou contradições. Seu primo é o advogado que tudo resolve, que em tudo dá jeito. Sua forma agravada é o advogado “íntimo”, aquele que, pelo simples fato de ser amigo, parente ou ex-algo, tudo resolve, como num passe de mágica, apenas por seu prestígio.

Advocacia é construção técnica e moral

Porém, como todos os advogados aprendem muito cedo e com muito suor, não há milagres na advocacia. A advocacia é construção técnica e moral. Ela é fruto de trabalho duro e técnico por anos, não raro desenvolvida de modo solitário em noites em claro. A percepção de milagreiros que resolvem ex machina ou na base de “contatos” é falsa, não faz justiça aos advogados e quando ocorre normalmente leva a riscos consideráveis para quem contrata. Sequer é advocacia. A promessa de milagres é um sinal de alerta em manuais de compliance. Tanto mais se estiver associada a outras “red flags”.

Os departamentos jurídicos internos e os profissionais de compliance têm uma função primordial na manutenção da advocacia dentro dos mais altos padrões éticos. Se, como diz o adágio, “o advogado é o primeiro juiz da causa”, os departamentos jurídico e de compliance são o primeiro tribunal de ética. São a primeira linha de defesa da ética profissional. E têm amplo ferramental para exercer essa função com qualidade técnica e imparcialidade.

Compliance é a aplicação de normas mas também é uma atividade gerencial, de organização de processos para consecução de um determinado fim. Sua função primeira é prevenir. Essa atividade será mais bem desenvolvida com protocolos e regras claras, efetivas e eficientes. A seriedade do momento certamente recomenda a defesa das prerrogativas da profissão, mas impõe, igualmente, enfrentar o desafio de atualizar e reforçar os padrões de atuação profissional. A Ordem dos Advogados do Brasil tem mais de um papel fundamental a desempenhar.

(*) Bacharel e doutor em Direito pela USP, professor visitante da International Anti-Corruption Academy em Viena e sócio de Marchini, Botelho e Caselta Advogados.

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