Diante do crescimento dos casos de exploração do trabalho análogo à escravidão, as empresas precisam mudar a mentalidade e eliminar do seu ecossistema quem não tem a ética como um pilar essencial de suas vidas e negócios
Thacio Chaves e Rayhanna Fernandes (*)
Recentemente, o Governo Federal atualizou a chamada “Lista Suja”, divulgando o nome de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão. Ao todo, 248 empregadores, entre pessoas jurídicas e físicas, foram adicionados à contagem, o que significa o maior número da história desde que a lista foi criada, em 2004. Agora, 654 pessoas integram o relatório.
Dentre os setores econômicos que se destacaram com o maior número de empregadores estão o agronegócio, que envolve tanto o cultivo do café quanto a criação de bovinos, a produção do carvão e a construção civil. É possível ter acesso a essas informações, assim como o ano fiscal da ação, o Estado e a quantidade de trabalhadores envolvidos e resgatados em cada uma das operações pelo site do Ministério do Trabalho e Emprego.
O fato é que o Estado Brasileiro ratificou, em 1957, a Convenção nº 29 sobre Trabalho Forçado e, em 1965, a Convenção nº 105 sobre a Abolição do Trabalho Forçado, ambas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mas, ainda assim, segue crescente o número de trabalhadores resgatados em condições adversas de trabalho. Só em 2023 foram 3.190 resgates no Brasil, somando R$ 12,8 milhões em indenizações trabalhistas, segundo dados do governo.
Ainda em termos de legislação, podemos citar a própria Constituição Federal, a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o Código Penal e o Estatuto do Trabalhador Rural como exemplos de normas protecionistas.
Apesar de todo este aparato jurídico que permite a penalização na esfera trabalhista e penal, e sabendo-se da limitação do Estado em fiscalizar e autuar empregadores, é preciso considerar e admitir a corresponsabilidade das empresas a favor de uma atuação estratégica, direcionada e robusta no combate ao trabalho escravo.
Primeiro, por princípios éticos e humanitários, posto que nenhum empresário deveria aceitar uma situação de trabalho escravo em sua linha de produção, seja em suas operações próprias ou naquelas que envolvem terceiros. Segundo, pelo dever que toda empresa tem de respeitar a legislação nacional e internacional no tocante ao tema.
Isso significa estar aderente ao compliance trabalhista, aos Princípios Orientadores para Empresas e Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas e ao artigo IV da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz: “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”.
Gerenciamento de riscos
E, em última análise, e não menos importante, a atuação direcionada das empresas nesta agenda significa gerenciar riscos para o seu negócio, sejam eles reputacionais, financeiros e, sobretudo, possíveis riscos de violações de direitos humanos sob colaboradores e terceiros. Diante desse cenário, como combater o trabalho escravo nas operações?
O primeiro passo é entender o que a legislação brasileira entende como trabalho análogo ao de escravo e quais são as condicionantes que podem vir a caracterizá-lo. Hoje, o Código Penal considera: i) trabalho forçado ou jornada exaustiva, em que trabalhadores são coagidos ou trabalham por horas consecutivas de tal forma que o expediente torna-se desgastante e coloca em risco sua integridade física e a saúde; ii) condições degradantes de trabalho, como alojamento precário, alimentação insuficiente, ausência de condições sanitárias; iii) restrição da liberdade, seja via locomoção ou por ação ostensiva; iv) e servidão por dívida, situação em que são atribuídas dívidas referentes a gastos com transporte, alimentação, aluguel e ferramentas de trabalho e, no final, são cobradas de forma arbitrária, chegando a serem descontadas do salário do trabalhador.
O segundo passo é diagnosticar e mapear a operação, avaliando riscos em toda a cadeia de valor. Esse é um ponto substancial, pois os maiores pontos de fragilidade de uma gestão em prol do trabalho decente estão nos fornecedores, sejam eles de pequeno, médio ou grande portes. Identificar o tipo de terceiro e se ele oferece riscos críticos são ações importantes e que precisam estar na estratégia dos negócios.
Sendo identificado qualquer potencial risco em relação ao tema, há necessidade de as empresas analisarem profundamente toda a cadeia de fornecedores com auditorias e inspeções in loco que podem acontecer de forma faseada.
Aqui, surge um ponto de atenção, pois uma prática muito comum no mercado é estabelecer cláusulas contratuais que afirmam que as partes se comprometem a não empregar mão de obra escravizada, tampouco violar os direitos humanos em suas atividades. Fato que, pelos próprios dados trazidos anteriormente, demonstra a fragilidade deste processo para um monitoramento efetivo das condições de trabalho de empregados e terceiros.
Agenda de direitos humanos
A melhor forma de evitar esse tipo de situação é começar processos com pessoas e empresas que possuem uma bagagem ética, compromissos públicos com a agenda de direitos humanos e ações robustas de monitoramento, ou seja, parte de um processo de seleção e contratação de fornecedores bem-feito.
Apesar de todo o aparato jurídico de combate ao trabalho análogo à escravidão no Brasil, o cenário segue uma crescente com alta nos casos divulgados pelo Governo. Isso significa que as empresas precisam mudar a mentalidade e eliminar do seu ecossistema quem não tem a ética como um pilar essencial de suas vidas e negócios.
Para isso, o Due Diligence dos fornecedores é um caminho e merece atenção e investimentos necessários para o desdobramento de ações efetivas. Ainda é um desafio, seja por questões logísticas ou operacionais, mas a verificação em campo, mesmo de forma faseada, é um processo perene e sustentável, que se faz necessário para mitigar as possibilidades de trabalho escravo na linha de produção de qualquer empresa séria.
(*) Thacio Chaves é diretor de Forensic & Integrity; Rayhanna Fernandes é gerente de ESG e membro do Comitê de Auditoria do Pacto Global da ONU – Rede Brasil. Ambos atuam na Protiviti, empresa especializada em soluções para gestão de riscos, compliance, ESG, auditoria interna, investigação, proteção e privacidade de dados.