A inovação trazida pela MP representa um importante passo para que o Brasil possa receber reconhecimento internacional como sendo um país atento aos direitos de titulares de dados pessoais
Luís Rodolfo Cruz e Creuz[1]
“Já advertia John Adams, em escrito datado de 1765, afirmando que para preservar a liberdade é preciso que o povo tenha amplo conhecimento do caráter e dos atos dos governantes, o que se constitui em um ‘direito inquestionável, inalienável e irrevogável, divino.’” – Maria Lúcia Karam [2].
Recentemente foi publicada a Medida Provisória nº 1.124, de 13 de junho de 2022 (MP 1.124/2022)[3], que, em especial, altera a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)[4], para transformar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em autarquia de natureza especial. Com a mudança, a ANPD deixa de ser um órgão vinculado à Presidência da República e se torna uma entidade independente da administração pública federal indireta.
A mudança regulatória representa uma grande evolução para a proteção de dados no Brasil, pois a autonomia e a independência da ANPD vêm reforçar o compromisso com as funções fiscalizadora e sancionadora da entidade, com isenção de subordinação hierárquica, reduzindo pressões externas em sua atuação, tanto repreensiva quanto na fiscalização.
A própria LGPD, quando da criação da ANPD, em seu Art. 55-A e parágrafos, estabeleceu que seu estabelecimento original se dava sem aumento de despesa, como órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República. Possuía natureza jurídica transitória, com previsão de possibilidade de transformação pelo Poder Executivo em entidade da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada à Presidência da República.
Tal avaliação quanto à transformação deveria ocorrer em até 2 (dois) anos da data da entrada em vigor da estrutura regimental da ANPD. Tal previsão foi incluída na LGPD posteriormente à sua inicial promulgação pela Lei nº 13.853, de 8 de julho de 2019[5], que dentre outras previsões veio criar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados.
O referido Art. 55-A e parágrafos, assim como outros, foram expressamente revogados pela MP 1.124/2022.
Com tais alterações, foi estabelecida nova redação para o Art. 55-A, fixando que criada a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, autarquia de natureza especial, a mesma é dotada de autonomia técnica e decisória, com patrimônio próprio, tendo sede e foro no Distrito Federal [6]. Para tanto, serão alocados na ANPD servidores ingressantes da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental [7] [8].
Visando atender questões regulatórias e orçamentárias, foi criado Cargo Comissionado Executivo – CCE-18 de Diretor-Presidente da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, sem aumento de despesas[9], que somente produzirá efeito a partir da entrada em vigor do decreto de alteração da Estrutura Regimental da ANPD[10].
Neste sentido, foi previsto período e regra de transição, ficando determinado que a Estrutura Regimental da ANPD continuará vigente como órgão integrante da Presidência da República e aplicável até a data de entrada em vigor da Estrutura Regimental da ANPD como autarquia de natureza especial [11]. Tal transição dependerá de ato conjunto do Ministro de Estado Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República e do Diretor-Presidente da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, onde será estabelecido o período de transição para o encerramento da prestação de apoio administrativo pela Secretaria Especial de Administração da Secretaria-Geral da Presidência da República à ANPD[12].
Significativas alterações na configuração da ANPD
Não há modificação de competências ou da estrutura organizacional da ANPD pela MP 1.124/2022, mas as mudanças trazem significativas alterações na configuração da ANPD, especialmente por outorgar autonomia técnica e decisória ao órgão, com patrimônio próprio e personalidade jurídica apartada da Presidência da República. A referida mudança pode colaborar para o aprofundamento e melhoria de políticas públicas e da atuação independente da autoridade, agora como autarquia de natureza especial.
Única ressalva fica por conta da alteração realizada no Inciso V do Art. 55-C, que criou um novo órgão na composição da ANPD, a Procuradoria da ANPD, em substituição ao órgão de assessoramento jurídico[13]. Com isso, ganha a entidade autonomia e capacidade processual própria, podendo promover ações judiciais estratégicas visando a defesa de direitos coletivos, em especial para a defesa do direito fundamental à proteção de dados[14], com todas as faculdades inerentes (ações civis públicas, medidas cautelares, busca e apreensão de documentos e dispositivos informáticos, dentre outras aplicáveis e dentro de sua competência legal).
A inovação trazida pela MP 1.124/2022 representa um importante passo para que o Brasil possa receber reconhecimento internacional como sendo um país atento aos direitos de titulares de dados pessoais. A sinalização de que o país possui adequado nível de proteção de dados, em especial perante padrões da União Europeia e do General Data Protection Regulation (GDPR), pode permitir o impulsionamento do reconhecimento internacional (sendo a independência um de seus elementos), visando dentre outros aspectos a autorização de transferência internacional de dados entre países.
Reforçamos que a MP 1.124/2022 se encontra em pleno vigor, com força de lei e efeitos imediatos, mas, por se tratar de medida provisória, é necessária a aprovação pelo Congresso Nacional, para que seja convertida em Lei (e tornando definitivas as salutares alterações feitas na LGPD).
[1] Luís Rodolfo Cruz e Creuz, Advogado e Consultor em São Paulo, Brasil. Sócio de Cruz & Creuz Advogados. Doutor em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP (2019); Certificate Program in Advanced Topics in Business Strategy University of La Verne – Califórnia (2018); Mestre em Relações Internacionais pelo Programa Santiago Dantas, do convênio das Universidades UNESP/UNICAMP/PUC-SP (2010); Mestre em Direito e Integração da América Latina pelo PROLAM – Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo – USP (2010); Pós-graduado em Direito Societário – LLM – Direito Societário, do INSPER (São Paulo) (2005); Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Dentre outras obras, autor do livro “Acordo de Quotistas – Análise do instituto do Acordo de Acionistas previsto na Lei 6.404/1976 e sua aplicabilidade nas Sociedades Limitadas à Luz do Novo Código Civil brasileiro, com contribuições da Teoria dos Jogos”. São Paulo : IOB-Thomson, 2007; do livro “Commercial and Economic Law in Brazil”. Holanda: Wolters Kluwer – Law & Business, 2012 (ISBN 978-90-411-4088-3) e do livro “Defesa da Concorrência no Mercosul – Sob uma Perspectiva das Relações Internacionais e do Direito”. São Paulo : Almedina, 2013 (ISBN 978-856-31-8233-3). E-mail: luis.creuz@lrcc.adv.br – Web: www.lrcc.adv.br – LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/luis-rodolfo-cruz-e-creuz/
[2] KARAM, Maria Lúcia. Escritos sobre a Liberdade – Volume 4 – Liberdade, Intimidade, Informação e Expressão. Rio de Janeiro : Editora Lumen Juris, 2009, pág. 3
[3] Medida Provisória nº 1.124, de 13 de junho de 2022. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.124-de-13-de-junho-de-2022-407804608 . Acesso em 16.jun.2022
[4] Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2019. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm . Acesso em 16.fev.2022
[5] Lei nº 13.853, de 8 de julho de 2019. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13853.htm#art2 . Acesso em 16.jun.2022
[6] Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2019. “Art. 55-A. Fica criada a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, autarquia de natureza especial, dotada de autonomia técnica e decisória, com patrimônio próprio e com sede e foro no Distrito Federal.”. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm . Acesso em 16.fev.2022
[7] Medida Provisória nº 1.124, de 13 de junho de 2022. “Art. 6º Serão alocados na ANPD servidores ingressantes da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, observado o disposto na Lei nº 7.834, de 6 de outubro de 1989.” Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.124-de-13-de-junho-de-2022-407804608 . Acesso em 16.jun.2022
[8] Vide Lei nº 7.834, de 6 de outubro de 1989, que cria a Carreira e os respectivos cargos de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, fixa os valores de seus vencimentos, e dá outras providências. Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1989/lei-7834-6-outubro-1989-365496-norma-pl.html . Acesso em 16.jun.2022
[9] Medida Provisória nº 1.124, de 13 de junho de 2022. “Art. 2º Fica criado um Cargo Comissionado Executivo – CCE-18 de Diretor-Presidente da Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Parágrafo único. O cargo de que trata o caput fica criado, sem aumento de despesa, mediante a transformação de um CCE-17 e de um CCE-2 alocados na estrutura da ANPD.” Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.124-de-13-de-junho-de-2022-407804608 . Acesso em 16.jun.2022
[10] Medida Provisória nº 1.124, de 13 de junho de 2022. “Art. 3º A transformação dos cargos comissionados na forma prevista no art. 2º somente produzirá efeito a partir da entrada em vigor do decreto de alteração da Estrutura Regimental da ANPD.” Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.124-de-13-de-junho-de-2022-407804608 . Acesso em 16.jun.2022
[11] Medida Provisória nº 1.124, de 13 de junho de 2022. “Art. 4º A Estrutura Regimental da ANPD, como órgão integrante da Presidência da República, continuará vigente e aplicável até a data de entrada em vigor da Estrutura Regimental da ANPD como autarquia de natureza especial” Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.124-de-13-de-junho-de-2022-407804608 . Acesso em 16.jun.2022
[12] Medida Provisória nº 1.124, de 13 de junho de 2022. “Art. 5º Ato conjunto do Ministro de Estado Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República e do Diretor-Presidente da Autoridade Nacional de Proteção de Dados estabelecerá o período de transição para o encerramento da prestação de apoio administrativo pela Secretaria Especial de Administração da Secretaria-Geral da Presidência da República à ANPD.” Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.124-de-13-de-junho-de-2022-407804608 . Acesso em 16.jun.2022
[13] Medida Provisória nº 1.124, de 13 de junho de 2022. “Art. 55-C. A ANPD é composta de: I – Conselho Diretor, órgão máximo de direção; II – Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade; III – Corregedoria; IV – Ouvidoria; V – Procuradoria; e VI – unidades administrativas e unidades especializadas necessárias à aplicação do disposto nesta Lei.” Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.124-de-13-de-junho-de-2022-407804608 . Acesso em 16.jun.2022
[14] Sobre o agora direito constitucional fundamental, vide nosso artigo “EC 115/22 – A inclusão da proteção de dados pessoais como direito fundamental – A emenda constitucional cria uma sólida base de sustentação para reforçar a implementação da LGPD no Brasil, aprofundando e exigindo maior cuidado e aprimoramento das medidas públicas e administrativas.”, publicado no periódico Migalhas em 22 de fevereiro de 2022, disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/360188/a-inclusao-da-protecao-de-dados-pessoais-como-direito-fundamental