Fabiano Dolenc Del Masso, professor de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Faculdade de Direito do Mackenzie
Para professor do Mackenzie, o uso crescente de soluções de TI está facilitando o acesso à Justiça por parte dos cidadãos comuns
A difusão de tecnologias de ponta no segmento jurídico tem desdobramentos que vão muito além da facilitação das rotinas dos advogados e de todos os operadores do Direito. Os avanços registrados, na verdade, apontam para a maior transparência e a maior democratização dos serviços prestados na área, em favor dos cidadãos comuns.
Tendo em vista este pano de fundo, Fabiano Dolenc Del Masso, professor de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Faculdade de Direito do Mackenzie, detalha as transformações promovidas pela Advocacia 4.0 na sociedade, tema central da segunda parte de sua entrevista concedida a Law Innovation, que publicamos a seguir.
Law Innovation – O mundo jurídico sempre foi incompreensível para o cidadão comum, ao fazer uso de uma linguagem, de códigos e de rituais próprios. O senhor diria que o uso de tecnologia pode tornar a Justiça mais transparente perante a população?
Fabiano Dolenc – Sem sombra de dúvida. Essas transformações são excelentes. Agora todos que fazem parte do mundo do Direito estão tendo que prestar contas à sociedade. Hoje as pessoas podem, por exemplo, ter rápido acesso a uma decisão proferida por um tribunal. Normalmente eram os advogados que prestavam este tipo de informação. Agora, os clientes podem ter acessos a informações do processo no mesmo momento que o advogado. O cliente tem como controlar e conhecer melhor o que se passa.
Além do mais, temos a possibilidade de assistirmos a julgamentos de questões constitucionais pela televisão, por meio de canais específicos da Justiça. O público assiste, formando seus pontos de vista em relação às matérias. Pode acompanhar as mudanças de posicionamento de um juiz comparando uma decisão antiga sua com a atual.
Há, portanto, uma transparência muito maior e agora nosso meio tem de arcar com as consequências disso, diante das cobranças da sociedade. Atualmente, um cidadão que nunca estudou Direito pode opinar sobre decisões dos tribunais superiores, dizendo se um ministro errou ou não. Então todos nós vamos ter que justificar de uma maneira mais coerente as nossas decisões. Essa transparência é muito bem-vinda. É um exercício democrático, não resta dúvida.
Law Innovation – Um outro aspecto desta discussão é o perfil do assim chamado advogado 4.0, que faz uso intensivo das novas tecnologias em seu trabalho. O senhor acredita que o setor jurídico está conseguindo adaptar-se culturalmente a toda esta modernização, em que pesem as resistências?
Fabiano Dolenc – Alguns profissionais de Direito conseguiram construir uma imagem muito chata e malvista na sociedade. A profissão jurídica foi criada num contexto em que alguém era nomeado para defender um terceiro porque reunia condições e competências muito melhores para fazer a defesa. Era um bom orador, com boa retórica. Alguém que era inteligente, culto e claro, que sabia argumentar. Isso era levado muito em consideração.
Só que começamos a ter um profissional que não tinha mais essas qualificações, mas que procurava manter o que era visto como a “nobreza” da advocacia. E isso foi sendo cada vez mais enxergado pelos leigos, com toda razão, como uma atitude muito enfadonha. Eram pessoas com discursos empolados, com uma falsa erudição, com toda a solenidade possível, sempre utilizando expressões em latim. Havia o sujeito que para fazer um pedido de desarquivamento de um processo escrevia três folhas, usando latim várias vezes.
Sinceramente, nos dias atuais isso não tem mais o menor cabimento. Os profissionais devem ser claros, harmônicos e concisos na sua linguagem. É isso que se exige e as pessoas que estão cursando agora as faculdades de Direito já têm este novo discurso. Hoje, a linguagem, também em razão das mudanças tecnológicas, é mais simples, clara e objetiva. Essas mudanças não provocaram nenhuma perda de qualidade, pelo contrário. O comportamento tradicional é que estava estragando a qualidade da área jurídica.
Hoje o advogado tem uma outra visão, pode trabalhar na sua casa, não precisa mais ficar em escritórios cheios de livros, não precisa mais usar terno. Ele só tem que saber como desenvolver o trabalho dele, ser uma pessoa que domina muito bem a linguagem moderna, inclusive a digital.
Law Innovation – Os grandes escritórios de advocacia marcam forte presença no setor, tendo-se tornado verdadeiras grifes. Há também personalidades jurídicas renomadas que, por si sós, atraem clientes. O senhor acredita que o uso da tecnologia poderá democratizar mais este mercado, permitindo que pequenos escritórios e recém-formados consigam competir com os grandes em condições mais favoráveis?
Fabiano Dolenc – Como em qualquer outra profissão, o Direito tem expoentes se destacando e talvez isso continue acontecendo. Mas também concordo que, pela utilização da tecnologia, este destaque será cada vez menor. Talvez argumentos expostos por grandes autoridades em uma determinada matéria deixem de ter importância. Teremos a possibilidade muito maior de recém-formados ou pessoas sem renome poderem participar de uma maneira muito intensa nas atividades da área jurídica.
É o que as pessoas querem hoje. Se um cliente encontra uma solução para sua demanda, isso por si só já é suficiente. A contratação de grandes advogados seguirá acontecendo para os clientes se sentirem bem assessorados, mas isso terá cada vez menor importância. A tendência é que haja menos espaço para que predominem estes nomes de destaque.
Law Innovation – Ainda a propósito deste assunto, uma discussão em voga nos EUA e na Europa é relativa à propalada “uberização” dos serviços jurídicos. Com este fenômeno, estes serviços poderiam ser prestados de forma mais pulverizada, com a tecnologia tendo grande importância nesta transformação. Como o senhor avalia este cenário?
Fabiano Dolenc – A expressão “uberização” pode ser utilizada com diversos significados. Ela poderia definir uma atividade que poderia ser exercida sem nenhum tipo de conhecimento específico. Do meu ponto de vista, não se trata disso. É uma onda que resulta da utilização da tecnologia. Na verdade, é um fenômeno que acontece não só na área jurídica, mas afeta também setores como a medicina e uma série de profissões que serão extintas em decorrência deste processo.
Sem sombra de dúvida, isso já está acontecendo no ramo jurídico, no mundo e no Brasil. Cada vez mais, teremos a popularização destes serviços, notadamente os que visam reduzir a burocracia, tornando inteiramente dispensáveis as atividades tradicionais. Antes havia, por exemplo, a necessidade de contratar um escritório de advocacia para registrar uma empresa numa junta comercial ou para registrar uma marca num órgão competente. Agora, com a tecnologia, qualquer pessoa pode fazer isso. Na minha opinião, essas mudanças já estão acontecendo e vão continuar.
Os profissionais jurídicos seguirão necessários para resolver questões altamente sensíveis ou que requeiram interpretações e discussões legais complexas. Cada vez mais, aumentará muito o grau de eficiência dos profissionais desta área porque aquilo que era mecânico, que visava à resolução de burocracia, já não terá mais lugar. Vamos precisar de advogados que realmente detenham um bom conhecimento de determinadas matérias para apontar caminhos em questões empresariais, em litígios familiares, entre outras áreas.
Law Innovation – Como o senhor vê o papel das lawtechs e legaltechs neste quadro de transformação? Que importância estas startups estão tendo na introdução de inovações?
Fabiano Dolenc – Elas estão sendo determinantes para estas mudanças. O mercado está investindo na criação de novas ferramentas, que estão sendo cada vez mais utilizadas. A quantidade de mudanças que estamos vendo, das mais variadas naturezas, é enorme. Temos à disposição, por exemplo, instrumentos de análise e até de redação de contratos e de documentos. Sem esquecer das transformações tecnológicas que hoje beneficiam a organização do Poder Judiciário.
Law Innovation – Fazendo-se uma comparação, na área financeira as fintechs estão conquistando fatias de mercados dos bancos tradicionais. O senhor imagina que as legaltechs ou lawtechs poderão replicar esta tendência na área jurídica, concorrendo diretamente com os grandes escritórios?
Fabiano Dolenc – Certamente esta é uma situação que nós observamos com atenção. Estudando o avanço das mudanças para o mundo 4.0 nos mais variados setores, não hesito em dizer que sim. As startups ocasionarão realmente muitas mudanças nesse sentido, ao eliminar por exemplo atividades que antes requeriam a presença física de profissionais. A comparação com as fintechs é muito oportuna.