Os desafios do compliance multidisciplinar

Anticorrupção, LGPD, PCLD, ambiental e antidiscriminatório. O departamento de compliance está pronto para fiscalizar o cumprimento de normas de natureza e finalidades distintas?

Adriana de Moraes Vojvodic (*)

Em recentes publicações, Martim Della Valle tem defendido a solidificação de uma “escola brasileira de compliance”, fundamentada na ideia de que o cânone global de compliance anticorrupção (ou os parâmetros mínimos largamente difundidos hoje como pilares de um programa de compliance) foi criado em uma realidade empresarial norte-americana e, portanto, um tanto diferente da nossa. O modelo importado, segundo ele, pode não ser suficiente para resolver alguns de nossos problemas. Essa é uma proposição legítima que merece nossa atenção.

Uma de suas principais ideias baseia-se no fato de que, diferentemente da dispersão acionária e empoderamento dos administradores de empresas nos EUA e Reino Unido, no Brasil as relações entre acionistas, controladores e administradores de empresas são distintas. A constituição acionária brasileira traz desafios próprios de governança que não seriam assaz enfrentados pelo cânone global de melhores práticas. A construção de programas de compliance anticorrupção, sendo parte da estrutura de governança, portanto, deve enfrentar tais desafios para ser efetiva. Estruturas e mecanismos próprios devem ser desenvolvidos para atender às especificidades do modelo empresarial brasileiro.

Essa é uma noção importante e inovadora, que pode ser resumida da seguinte forma: elementos da estrutura e de contexto das empresas brasileiras devem ser levados em consideração para a criação de um programa efetivo de compliance. Saber identificá-los pode ser a chave para o sucesso do programa.

Nessa realidade, podem ser apontados outros desafios com os quais o departamento de compliance nacional vem sendo demandado a enfrentar, como o diversificado cardápio de temas absorvido no portfólio de “compliances”: anticorrupção, antidiscriminatório, LGPD, PCLD, ambiental, tributário, entre outros. Se considerarmos todos eles, temos de nos questionar o que eles significam em termos de organização das empresas para o futuro.

Os setores de compliance vêm ampliando o alcance na gestão comportamental e de controles internos, mas eles estão preparados para ser um amplo guarda-chuva de análise e monitoramento do cumprimento de regulações de naturezas e finalidades distintas? A reposta passa em compreender como e por que tais sistemas de controles internos foram criados.

Lavagem de dinheiro

Os sistemas de controles internos empresariais começam a se tornar robustos no Brasil na década de 90, especialmente com a lei de lavagem de dinheiro e normas de órgãos reguladores das instituições financeiras, que criaram o arcabouço para a criação de um padrão de controle eficaz das atividades. Não à toa, o termo “padrão banco” é usado ainda hoje por profissionais da área para se referir a programas robustos de compliance.

A lei anticorrupção expandiu a área de atuação desses profissionais, com a implantação de programas de compliance em companhias com grande exposição a risco no relacionamento com o Poder Público, sobretudo guiados por manuais e diretrizes emitidos por órgãos da administração pública voltados ao combate à corrupção.

Hoje, menos de uma década após a criação da lei, passando pela Operação Lava-Jato e suas ramificações, é notória a consolidação de estruturas de compliance efetivas em empresas de grande porte que atuam nestes setores. Podemos dizer que passamos de um “padrão banco” a um “padrão CGU”.

Para isso, a necessidade de formar profissionais experts na área se tornou evidente. Se no início de 2014 a área jurídica das empresas ficou responsável pela elaboração das primeiras minutas de códigos de conduta, hoje a alta especialização permite a formação de verdadeiras equipes em torno das inúmeras tarefas que estão envolvidas na implementação e gestão de um sistema de controles internos adequado e eficaz. Compliance, antes de criação

e fiscalização de regras, é eminentemente uma atividade de gestão, onde a eficácia é critério de mensuração de sucesso.

Assim, corroborando o argumento da necessidade de adaptação do “cânone global” de compliance à realidade brasileira, é possível questionar se as estruturas pensadas para lidar com questões relacionadas à corrupção e fraudes são adequadas pela lidar com outras temáticas.

Independência e fiscalização

Se por um lado no compliance anticorrupção existem elementos essenciais como a independência e a capacidade de fiscalização por órgãos superiores da empresa e o tone at the top, por outro no compliance com a LGPD questões como agilidade tecnológica e rastreabilidade de tratamento de dados são centrais.

Os exemplos são vários e a diferença das matérias não significa, automaticamente, que a compliance officer, como gestora de mudanças na organização, não deve atuar no fornecimento de ferramentas próprias ao compliance anticorrupção a outros temas que demandam promoção de mudanças culturais internas e implementação de controles. A experiência bem-sucedida dos departamentos de compliance no Brasil pode e deve impulsionar mudanças em outras áreas.

Contudo, antes de agregar todas elas em uma única estrutura, cabe avaliar se algumas premissas para essa expansão estão presentes, a principal delas sendo a multidisciplinaridade. Se um departamento modelo de compliance anticorrupção conta não só com funções de criação e fiscalização de políticas, mas também com profissionais com capacidades analíticas, jurídicas, financeiras e contábeis, da mesma forma um departamento de compliance de atuação ampla deve se abrir a uma multiplicidade ainda maior de formações, a depender das matérias sob sua gestão. Profissionais especializados em resolução de conflitos e desenvolvimento de ambientes seguros, tecnologia, sustentabilidade, dentre outras habilidades e capacitações, são exemplos de expertises que serão demandadas de um departamento amplo de compliance.

É notório e animador o fortalecimento do compliance no Brasil nos últimos anos. As lições aprendidas e toda a experiência acumulada devem ser usadas em favor do desenvolvimento de mecanismos de implementação de agendas de interesse e de relevância para o mercado empresarial e para a sociedade

como um todo. As mudanças dependerão de um compliance efetivo, baseado em multidisciplinaridade, antes de apenas a introdução de novas políticas internas e seus formulários de aceite.

(*) Doutora em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), professora de Compliance e Governança no Insper e advogada do escritório Barros Pimentel Advogados.

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